quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

POESIA COMPLETA DE S. JOÃO DA CRUZ








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PARA VIR A GOSTAR DE TUDO

Para vir a gostar tudo,
Não queiras ter gosto em nada.
Para vir a saber tudo,
Não queiras saber algo em nada.
Para vir a possuir tudo,
Não queiras possuir algo em nada.

Para vir ao que não gostas,
Hás-de ir por onde não gostas.
Para vir ao que não sabes,
Hás-de ir por onde não sabes,
Para vir a possuir o que não possuis,
Hás-de ir por onde não possuis.
Para vir ao que não és,
Hás-de ir por onde não és.

Quando reparas em algo,
Deixas de arrojar-te ao todo.
Para vir de todo ao todo,
Hás-de deixar-te de todo em tudo.
E quando o venhas de todo a ter,
Hás-de tê-lo sem nada querer.







CANÇÕES DA ALMA

Em uma noite escura
Com ânsias em amores inflamada,
Ó ditosa ventura!
Sai sem ser notada,
Estando já minha casa sossegada.

Às escuras, segura,
Pela secreta escada disfarçada,
Ó ditosa ventura!
Em trevas e em celada,
Estando já minha casa sossegada.

Nessa noite ditosa,
Em segredo, porque ninguém me via,
Nem via eu qualquer cousa,
Sem outra luz nem guia
Excepto a que no coração ardia.

Mas esta me guiava
Mais certeira do que a luz do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu para mim sabia,
Em parte onde ninguém morar parecia.

Ó noite que guiaste,
Ó noite amável mais do que a alvorada:
Ó noite que juntaste
Amado com amada,
A amada no Amado transformada!

Em meu peito florido
Que só para ele inteiro se guardava,
Ficou adormecido,
E eu o acariciava
E o abanar dos cedros refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
No colo me tocava,
E os sentidos suspensos me deixava.

Fiquei-me e esqueci-me,
O rosto reclinado sobre o Amado,
Cessou tudo e rendi-me,
Deixando meu cuidado
Em meio de açucenas olvidado.







CÂNTICO ESPIRITUAL
CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO


Esposa

Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado,
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti; tinhas partido!

Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.

Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores,
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.

Pergunta às criaturas

Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?

Resposta das criaturas

Mil graças derramando
Prestes passou dos soutos pela espessura
E enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

Esposa

Ah! Quem poderá sarar-me?
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me
Mensageiro entremeio,
Que não sabem dizer-me o que eu anseio.

E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

Apaga-me a tristeza,
Que mais ninguém me pode aqui valer;
E veja tua beleza
Que é luz dos olhos meus
E para ela só os quero ter.

Mostra tua presença
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e com a figura.

Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados!...

Aparta-os, Amado,
Que o voo levanto.

Esposo

Volve já, ó pomba
Que o cervo vulnerado
Por sobre o outeiro assoma
Ao ar desse teu voo, e o fresco toma.

Esposa

Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As ínsulas estranhas,
Os rios rumorosos
O sibilo dos ares amorosos;

A noite sossegada
Tocando já com o surgir da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora...

Caçai-nos as raposas,
Que a nossa vinha já se encontra em flor,
E tantas são as rosas,
Que em pinha as vamos pôr;
No cimo ninguém surja, por favor.

Detém-te bóreas morto,
Vem austro, que recordas os amores,
Aspira por meu horto,
E corram teus olores
E o Amado pascerá por entre as flores.

Ó ninfas da Judeia,
Enquanto nos rosais e dentre as flores
O âmbar nos recreia,
Morai nos arredores
Nem cheguem aos umbrais vossos rumores.

Esconde-te, meu Bem,
E volta a tua face para as montanhas;
Sem o saber ninguém,
E olha para as companhas
Da que por ilhas anda, as mais estranhas.

A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ares, ardores,
Mais os medos das noites, veladores.

Pelas amenas liras
E canto de sereias vos conjuro,
Que cessem vossas iras
E não toqueis no muro,
Para que a Esposa durma mais seguro.

E já entrou a Esposa
Para dentro do horto ameno desejado
E a seu sabor repousa
O colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

Sob a árvore de Adão
Ali comigo foste desposada,
Ali te dei a mão
E foste resgatada
Lá onde tua mãe fora violada.

Nosso leito florido
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de oiro coroado...

Discorrem as donzelas,
Sobre as tuas pegadas, no caminho;
Ao toque das centelhas
E ao temperado vinho,
Dão-te aromas de bálsamo divino.

Bebi do meu Amado
Na adega interior; quando saía
Por todo aquele prado
Já nada conhecia
E o rebanho deixei que antes seguia.

Ali me deu seu peito
E ciência me ensinou muito saborosa,
E a Ele, dom perfeito
De mim, Lhe fiz gostosa
E ali lhe prometi ser sua esposa.

De alma me consagrei
Ao seu serviço e todo o meu haver;
E já não guardo a grei,
Nem tenho outro mister:
Pois já somente amar é meu viver.

Se pois, no eido entretida
Não mais eu já for vista nem achada,
Direis que estou perdida,
Que andando enamorada
Perdidiça me fiz, e estou lucrada.

De flores e esmeraldas
Pela frescura das manhãs colhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas
E num cabelo meu entretecidas.

Aquele só cabelo,
Que em meu colo voar tu advertiste,
Viste em meu colo, e, ao vê-lo,
Preso nele Te viste
E num só dos meus olhos te feriste.

E quando tu me olhavas,
Sua graça em mim teus olhos imprimiam:
Por isso mais me amavas
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em Ti viam.

Não queiras desprezar-me,
Que se morena cor em mim achaste,
Já bem podes olhar-me,
Depois que Tu me olhaste,
Pois graça e formosura em mim deixaste.

A cândida pombinha
À arca com o ramo regressou
E já a rolazinha
Ao sócio que esperou
Junto às ribeiras verdes encontrou.

Em solidão vivia,
Seu ninho em solidão pôs escondido,
Na solidão a guia
A sós o seu Querido,
Também, na solidão, de amor ferido.

Gozemo-nos , Esposo,
Vamo-nos ver em tua formosura
Ao monte e cerro umbroso
Donde mana a água pura:
Entremos mais adentro na espessura.

E logo às mais erguidas
Cavernas do rochedo subiremos,
Que estão bem escondidas;
Ali logo entraremos
E o mosto das romãs saborearemos.

Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ó vida e alegria,
Aquilo que me deste noutro dia:

Da brisa o aspirar,
Da doce filomela a voz amena,
O souto de encantar,
Pela noite serena,
Com chama que consuma e não dá pena.

Ninguém isto alcançava
E nem Aminadab aparecia
E o cerco sossegava
E à vista descendia,
Das claras águas, a cavalaria.







CANÇÕES QUE FAZ A ALMA NA ÍNTIMA UNIÃO COM DEUS

Ó chama de amor viva!
Que ternamente feres
Da minha alma no centro mais profundo!
Pois já não és esquiva,
Acaba já, se queres;
Rompe a teia de encontro tão jucundo.

Ó cautério suave!
Ó saborosa chaga!
Ó branda mão! Ó toque delicado
Que a vida eterna sabe,
E quanto deve paga!
Matando, morte em vida tens trocado.

Ó lâmpadas brilhantes!
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
Escuro e cego, dantes,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto ao seu Querido!

Que manso e que amoroso
Acordas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gozoso
De bem e glória cheio
Quão delicadamente me enamoras!







COPLAS DA ALMA QUE PENA POR NÃO VER A DEUS

Vivo sem viver em mim
E de tal maneira espero
Que morro porque não morro


Em mim eu não vivo já,
E sem Deus viver não posso;
Pois sem ele e sem mim quedo,
Este viver que será?
Mil mortes se me fará,
Pois minha mesma vida espero,
Morrendo porque não morro.

Esta vida que aqui vivo
É privação de viver;
E assim, é contínuo morrer
Até que viva contigo.
Ouve, meu Deus, o que digo,
Que esta vida não a quero
Pois morro porque não morro.

Ausente estando eu de ti,
Que vida poderei ter
Senão morte padecer
A maior que jamais vi?
Pena e dó tenho de mim,
Pois se assim eu persevero,
Morrerei porque não morro.

O peixe que da água sai
Nenhum alívio carece
Que na morte que padece,
Alfim a morte lhe vale.
Que morte haverá que se iguale
Ao meu viver lastimoso
Pois se mais vivo, mais morro?

Quando penso aliviar-me
Vendo-te no Sacramento,
Faz-se em mim mais sentimento
De não poder-te gozar;
Tudo é para mais penar,
Por não ver-te como quero,
E morro porque não morro.

Se me deleito, Senhor,
Com a esperança de ver-te,
Vendo que posso perder-te
Redobra-se em mim a dor;
Vivendo em tanto temor
E esperando como espero,
Morro sim, porque não morro.

Livra-me já desta morte,
Meu Deus, entrega-me a vida;
Não ma tenhas impedida
Por este laço tão forte;
Olha que peno por ver-te,
O meu mal é tão inteiro,
Que morro porque não morro.

Chorarei já minha morte
Lamentarei minha vida,
Enquanto presa e retida
Por meus pecados está.
Oh! Meu Deus! Quando será
Que eu possa dizer deveras:
Vivo já porque não morro?







CANTAR DA ALMA QUE GOZA POR CONHECER A DEUS PELA FÉ

Que bem sei eu a fonte que mana e corre mesmo de noite.

Aquela eterna fonte está escondida,
Mas eu bem sei onde tem a sua guarida,
Mesmo de noite.

Sua origem não a sei, pois não a tem,
Mas sei que toda a origem dela vem,
Mesmo de noite.

Sei que não pode haver coisa tão bela,
E que os céus e a terra bebem dela,
Mesmo de noite.

Eu sei que nela o fundo não se pode achar,
E que ninguém pode nela a vau passar,
Mesmo de noite.

Sua claridade nunca é obscurecida,
E sei que toda a luz dela é nascida,
Mesmo de noite.

Sei que tão caudalosas são suas correntes,
Que céus e infernos regam, e as gentes,
Mesmo de noite.

A corrente que desta fonte vem
É forte e poderosa, eu sei-o bem,
Mesmo de noite.

A corrente que destas duas procede,
Sei que nenhuma delas a precede,
Mesmo de noite.

Aquela eterna fonte está escondida
Neste pão vivo para dar-nos vida,
Mesmo de noite.

De lá está chamando as criaturas,
Que nela se saciam às escuras,
Porque é de noite.

Aquela viva fonte que desejo,
Neste pão de vida já a vejo,
Mesmo de noite.







ROMANCE SOBRE O EVANGELHO «IN PRINCIPIO ERAT VERBUM», ACERCA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

No princípio morava
O Verbo, e em Deus vivia,
Nele sua felicidade
Infinita possuía.
O mesmo Verbo Deus era,
E o princípio se dizia.
Ele morava no princípio,
E princípio não havia.
Ele era o mesmo princípio;
Por isso dele carecia.
O Verbo se chama Filho,
Pois do princípio nascia.
Ele sempre o concebeu,
E sempre o conceberia.
Dá-lhe sempre sua substância
E sempre a conservaria.
E assim, a glória do Filho
É a que no Padre havia;
E toda a glória do Padre
No seu Filho a possuía.
Como amado no amante
Um no outro residia,
E esse amor que os une
No mesmo coincidia
Com o de um e com o de outro
Em igualdade e valia.
Três pessoas e um amado
Entre todos três havia;
E um amor em todas elas
E um só amante as fazia,
E o amante é o amado
Em que cada qual vivia;
Que o ser que os três possuem,
Cada qual o possuía,
E cada qual deles ama
À que este ser recebia.
Este ser é cada uma,
E este só as unia
Num inefável abraço
Que dizer-se não podia.
Pelo qual era infinito
O amor que os unia,
Porque o mesmo amor três têm,
E sua essência se dizia:
Que o amor quanto mais uno,
Tanto mais amor fazia.

Da comunicação das Três Pessoas

E naquele amor imenso
Que de ambos procedia,
Palavras de grande gozo
O Padre ao Filho dizia,
De tão profundo deleite,
Que ninguém as entendia;
Somente o Filho as gozava,
Pois a ele pertencia.
Mas naquilo que se entende
Desta maneira dizia:
- Nada me contenta, Filho,
fora da tua companhia.
E se algo me contenta,
Em ti mesmo o quereria.
O que a ti mais se parece,
A mim mais satisfazia;
E o que em nada te assemelha,
Em mim nada encontraria.
Só de ti eu me agradei
Ó vida da vida minha!
És a luz da minha luz.
És minha sabedoria;
Figura da minha substância,
Em quem bem me comprazia.
Ao que a ti te amar, meu Filho,
A mim mesmo me daria,
E o amor que eu em ti tenho,
Nele mesmo eu o poria,
Por razão de ter amado
Aquele a quem tanto queria.

Da Criação

Uma esposa que te ame,
Meu Filho, dar-te queria,
Que por teu valor mereça
Estar em nossa companhia,
E comer pão numa mesa
Do mesmo que eu comia,
Para que conheça os bens
Que em tal Filho eu possuía.
E se congrace comigo
Por tua graça e louçania.
- Muito te agradeço, Padre,
- O Filho lhe respondia -.
À esposa que me deres,
Minha claridade eu daria,
Para que por ela veja
Quanto meu Padre valia,
E como o ser que possuo
Do seu ser o recebia.
A encostarei ao meu braço,
E em teu amor se abrasaria,
E com eterno deleite
Tua bondade exaltaria.

Prossegue

- Faça-se, pois – disse o Padre -
Que o teu amor o merecia.
E neste dito que disse,
O mundo criado havia;
Um palácio para a esposa,
Feito em grande sabedoria;
O qual em dois aposentos,
Alto e baixo dividia.
O baixo que diferenças
Infinitas possuía;
Mas o alto requintava
De admirável pedraria,
Para que conheça a esposa
O Esposo que possuía.
No mais alto colocava
A angélica hierarquia;
Mas a natureza humana
No inferior a poria,
Por ser sua compleição
Algo de menor valia.
E embora o ser e os lugares
Desta sorte os repartia;
Eram todos um só corpo
Da esposa que dizia,
Que o amor dum mesmo Esposo
Uma esposa os fazia.
Os de cima possuíam
O Esposo na alegria,
Os de baixo em esperança
Da fé que lhes infundia,
Dizendo-lhes que a seu tempo
Ele os engrandeceria,
E aquela sua baixeza
Ele lha levantaria,
De maneira que ninguém
Jamais a insultaria;
Porque em tudo semelhante
Ele a eles se faria
E viria ter com eles,
E com eles moraria;
E que Deus seria homem,
E que o homem Deus seria,
E trataria com eles,
Comeria e beberia;
E para sempre com eles
O mesmo se ficaria
Até que se consumasse
Este tempo que corria,
E que juntos se gozassem
Em eterna melodia;
Porque ele era a cabeça
Da esposa que possuía,
À qual todos os membros
Dos justos ajuntaria,
Porque são corpo da esposa,
A quem ele tomaria
Em seus braços ternamente,
E ali seu amor lhe daria;
E que assim juntos num só
Ao Padre a levaria,
Donde do mesmo deleite
Que Deus goza, gozaria;
Que, como o Padre e o Filho
E o que deles procedia
Como um vive no outro,
Assim a esposa seria,
Que dentro de Deus absorta,
Vida de Deus viveria.

Prossegue

Com esta bendita esperança
Que de cima lhes viria,
O peso dos seus trabalhos
Mais leve se lhes fazia;
Mas a prolongada espera
E o desejo que crescia
De gozar-se com o Esposo
De contínuo os afligia.
Por isso com orações,
Com suspiros e agonia,
Com lágrimas e com gemidos
Lhe rogavam noite e dia
Que já se determinasse
A fazer-lhes companhia.
Uns diziam: Oh! Se fosse
No meu tempo essa alegria!;
Outros: Acaba, Senhor,
Ao que hás-de enviar, envia;
Outros: Oh! Se já rompesses
Esses céus, eu já veria
Com meus olhos que descesses,
E meu pranto cessaria!
Regai, ó nuvens do alto,
Porque a terra to pedia,
E abra-se já a terra
Que espinhos nos produzia,
E produz aquela flor
Com que ele floresceria.
Outros diziam: Oh! Ditoso
Quem em tal tempo vivia,
Que mereça ver a Deus
Com os olhos que possuía,
Tratá-lo com suas mãos,
Estar em sua companhia,
E disfrutar os mistérios
Que ele então ordenaria!

Prossegue

Em estes e outros rogos
Muito tempo passaria;
Porém nos últimos anos
O fervor muito crescia,
Quando o velho Simeão
Em desejos se acendia,
Rogando a Deus que quisesse
Deixá-lo ver esse dia.
E assim o Espírito Santo
Ao bom velho respondia
Dando-lhe sua palavra
De que a morte não veria
Até que chegasse a vida
Que do alto desceria,
E que ele em suas mãos
Ao mesmo Deus tomaria,
E o teria nos seus braços
E consigo o abraçaria.

Prossegue a encarnação

Já que o tempo era chegado
Em que fazer-se devia
O resgate da esposa
Que em duro jugo servia,
Debaixo daquela lei
Que Moisés dado lhe havia,
O Padre com amor terno
Desta maneira dizia:
- Já vês, Filho, que tua esposa
à tua imagem feito havia,
e no que a ti se parece
contigo coincidia;
mas é diferente na carne,
que em teu simples ser não havia.
Pois nos amores perfeitos
Esta lei se requeria,
Que se torne semelhante
O amante a quem queria,
Porque a maior semelhança
Mais deleite caberia;
O qual, por certo, em tua esposa
Grandemente cresceria
Se te visse semelhante
Na carne que possuía.
- Minha vontade é a tua
- O Filho lhe respondia -
e a glória que eu tenho
é a tua vontade ser minha;
e a mim me agrada, Padre,
o que tua Alteza dizia,
porque por esta maneira
tua bondade se veria;
ver-se-á teu grande poder,
justiça e sabedoria;
irei a dizê-lo ao mundo
e notícia lhe daria
de tua beleza e doçura,
de tua soberania.
Irei buscar minha esposa
E sobre mim tomaria
Suas fadigas e dores
Em que tanto padecia;
E para que tenha vida,
Eu por ela morreria,
E tirando-a das profundas,
A ti a devolveria.

Prossegue

Então chamou um arcanjo
Que São Gabriel se dizia,
Enviou-o a uma donzela
Que se chamava Maria,
De cujo consentimento
O mistério dependia;
Na qual a Santa Trindade
De carne ao Verbo vestia;
E embora dos três a obra
Somente num se fazia;
Ficou o Verbo encarnado
Nas entranhas de Maria.
E o que então só tinha Padre
Já Madre também teria,
Embora não como outra
Que de varão concebia,
Porque das entranhas dela
Sua carne recebia;
Pelo qual Filho de Deus
E do Homem se dizia.

Do Nascimento

Quando foi chegado o tempo
Em que de nascer havia,
Assim como o desposado,
Do seu tálamo saía
Abraçado a sua esposa,
Que em seus braços a trazia;
Ao qual a bendita Madre
Em um presépio poria
Entre pobres animais
Que então por ali havia.
Os homens davam cantares,
Os anjos a melodia,
Festejando o desposório
Que entre aqueles dois havia.
Deus, porém, em o presépio
Ali chorava e gemia;
Eram jóias que a esposa
Ao desposório trazia;
E a Madre se assombrava
Da troca que ali se via:
O pranto do homem em Deus,
E no homem a alegria;
Coisas que num e no outro
Tão diferentes ser soía.

Finis







OUTRO DO MESMO QUE VAI POR «SUPER FLUMINA BABYLONIS»

Por sobre aquelas correntes
Que em Babilónia encontrava,
Ali me sentei chorando,
Ali a terra regava,
Recordando-me de ti,
Ó Sião, a quem amava.
Tua lembrança era doce,
E com ela mais chorava.
Deixei os trajos de festa,
Os de trabalho tomava,
Pendurei nos salgueirais
A música que levava,
Colocando-a na esperança
Daquilo que em ti esperava.
Ali me feriu o amor,
E o coração me arrancava.
Disse-lhe que me matasse,
Pois de tal sorte chagava.
Eu me metia em seu fogo,
Sabendo que me abrasava,
Desculpando a mariposa
Que no fogo se acabava.
Estavam-me consumindo,
E só em ti respirava.
Em mim, por ti, eu morria
E por ti ressuscitava;
Porque a lembrança de ti
Dava vida e a tirava.
Finava-me por finar-me
E a vida me matava,
Porque ela perseverando,
De ver-te, a mim, me privava.
Mofavam os estrangeiros
Entre os quais cativo estava.
Pensava como não viam
Que o gozo os enganava.
Pediam-me eles cantares
Dos que em Sião eu cantava:
- Canta de Sião um hino;
para vermos como soava.
- Dizei, como em terra alheia
onde por Sião chorava
cantarei eu a alegria
que eu em Sião disfrutava?;
no olvido a deixaria
se em terra alheia gozava.
Com meu palato se junte
A língua com que falava,
Se de ti eu me olvidar
Na terra onde morava.
Sião, pelos verdes ramos
Que Babilónia me dava
Olvide-me a minha destra,
Coisa que em ti mais amava,
Se de ti não me lembrar
No que mais gosto me dava,
E se eu tivesse festa
E sem ti a festejava.
Oh! Filha de Babilónia,
Mísera e desventurada!
Bem-aventurado era
Aquele em quem confiava,
Que te há-de dar o castigo
Que da tua mão levava;
E juntará os seus filhos
E a mim, que em ti chorava,
À pedra, que era Cristo,
Pelo qual eu te deixava.

Debetur soli gloria vera Deo!







COPLAS DO MESMO SOBRE UM ÊXTASE DE ALTA CONTEMPLAÇÃO

Entrei aonde não soube
E quedei-me não sabendo
Toda a ciência transcendendo


Eu não soube aonde entrava,
Porém, quando ali me vi,
Sem saber aonde estava,
Grandes coisas entendi;
Não direi o que senti,
Que me quedei não sabendo,
Toda a ciência transcendendo.

De paz e de piedade
Era a ciência perfeita,
Em profunda soledade
Entendida (via recta);
Era coisa tão secreta,
Que fiquei como gemendo,
Toda a ciência transcendendo.

Estava tão embevecido,
Tão absorto e alheado,
Que se quedou meu sentido
De todo o sentir privado,
E o espírito dotado
De um entender não entendendo,
Toda a ciência transcendendo.

O que ali chega deveras
De si mesmo desfalece;
Quanto sabia primeiro
Muito baixo lhe parece,
E seu saber tanto cresce,
Que se queda não sabendo,
Toda a ciência transcendendo.

Quanto mais alto se sobe,
Tanto menos se entendia,
Como a nuvem tenebrosa
Que na noite esclarecia;
Por isso quem a sabia
Fica sempre não sabendo,
Toda a ciência transcendendo.

Este saber não sabendo
É de tão alto poder,
Que os sábios discorrendo
Jamais o podem vencer,
Que não chega o seu saber
A não entender entendendo,
Toda a ciência transcendendo.

E é de tão alta excelência
Aquele sumo saber,
Que não há arte ou ciência
Que o possam apreender;
Quem se soubera vencer
Com um não saber sabendo,
Irá sempre transcendendo.

E se o quiserdes ouvir,
Consiste esta suma ciência
Em um subido sentir
Da divinal Essência;
É obra da sua clemência
Fazer quedar não entendendo,
Toda a ciência transcendendo.







OUTRAS CANÇÕES AO DIVINO DE CRISTO E A ALMA

Um Pastorinho, só, está penando,
Privado de prazer e de contento,
Posto na pastorinha o pensamento,
Seu peito de amor ferido, pranteando.

Não chora por tê-lo o amor chagado,
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado.

Que só o pensar que está esquecido
Por sua bela pastora, é dor tamanha,
Que se deixa maltratar em terra estranha,
Seu peito por amor muito dolorido.

E disse o Pastorinho: Ai, desditado!
De quem do meu amor se faz ausente
E não quer gozar de mim presente!,
Seu peito por amor tão magoado!

Passado tempo em árvore subido
Ali seus belos braços alargou,
E preso a eles o Pastor se ficou,
Seu peito por amor muito dolorido.







OUTRAS COPLAS AO DIVINO

Atrás de amoroso lance,
Que não de esperança falto,
Voei tão alto, tão alto,
Que, à caça, lhe dei alcance.


Para que eu alcance desse
Àquele lance divino,
Voar tanto foi preciso
Que de vista me perdesse;
E, contudo, neste transe
A meio do voo quedei falto;
Mas o amor foi tão alto,
Que lhe dei, à caça, alcance.

Quando mais alto subia
Deslumbrou-se-me a visão,
E a mais forte conquista
Se fazia em escuridão;
Mas por ser de amor o lance,
Dei um cego e escuro salto,
E fui tão alto, tão alto,
Que lhe dei, à caça, alcance.

Quanto mais alto chegava
Deste lance tão subido,
Tanto mais baixo e rendido
E abatido me encontrava;
Disse: Não haverá quem alcance;
E abati-me tanto, tanto,
Que fui tão alto, tão alto,
Que lhe dei, à caça, alcance.

Por uma estranha maneira
Mil voos passei de um só voo,
Porque a esperança do céu
Tanto alcança quanto espera;
Esperei só este lance
E em esperar não fui falto,
Pois fui tão alto, tão alto,
Que, à caça, lhe dei alcance.







GLOSA

Sem arrimo e com arrimo,
Sem luz e às escuras vivendo,
Todo me vou consumindo.


Minha alma está desprendida
De toda a coisa criada
E sobre si levantada,
Numa saborosa vida
Só em seu Deus arrimada.
Por isso já se verá
A coisa que mais estimo,
Que minha alma se vê já
Sem arrimo e com arrimo.

E, embora trevas padeço
Em esta vida mortal,
Não é tão grande o meu mal,
Porque, se de luz careço,
Tenho vida celestial;
Porque o amor dá tal vida,
Quanto mais cego vai sendo,
Que tem a alma rendida,
Sem luz e às escuras vivendo.

Faz obra tal o amor
Depois que o conheci,
Que se há bem ou mal em mim,
Tudo faz de um só sabor,
E à alma transforma em si;
E assim sua chama saborosa,
A qual em mim estou sentindo,
Apresta sem restar coisa,
Todo me vou consumindo.







GLOSA AO DIVINO

Por toda a formosura
Nunca eu me perderei,
Mas sim por um não sei quê
Que se alcança por ventura.


Sabor de bem que é finito,
Ao mais que pode chegar
É cansar o apetite
E estragar o paladar;
E assim por toda a doçura
Nunca eu me perderei,
Mas sim por um não sei quê
Que se acha por ventura.

Não vos cause espanto isto,
Que o gosto se torne tal,
Porque é a causa do mal
Alheia de todo o resto;
E assim toda a criatura
Alienada se vê,
E gosta um não sei quê
Que se acha por ventura.

É porque estando a vontade
De Divindade tocada,
Não pode ficar pagada
A não ser com Divindade;
Mas porque esta formosura
Somente se vê por fé,
Saboreia um não sei quê
Que se acha por ventura.

Assim de tal namorado
Dizei-me se tendes dor,
Pois que ele não tem sabor
Entre tudo o que é criado;
Só, sem forma e sem figura,
Sem achar arrimo e pé,
Gostando lá não sei quê
Que se acha por ventura.

Não penseis que o interior,
Que é de muito mais valia,
Acha gozo e alegria
No que cá produz sabor;
Mas sobre toda a formosura
E o que foi, será e é,
Gosta de lá um não sei quê
Que se acha por ventura.

Mais emprega seu cuidado,
Quem se quer avantajar,
No que ainda está por ganhar
Que no que já tem ganhado;
E assim, para mais altura,
Eu sempre me inclinarei
Sobretudo a um não sei quê
Que se acha por ventura.

Pelo que pelo sentido
Se pode cá compreender
E quanto se pode entender,
Seja embora muito subido
Nem por graça e formosura
Eu nunca me perderei,
Mas sim por um não sei quê
Que se acha por ventura.

Finis







LETRAS

Do Verbo divino
A Virgem prenhada
Segue de caminho:
Pede-vos pousada.

Suma da perfeição

Olvido do que é criado,
Memória do Criador,
Atenção ao interior
E estar amando o Amado.






***


As Obras Completas de Santa Teresa e de S. João da Cruz, que seguimos, estão publicadas em Portugal pelas Edições Carmelo.


JOSÉ MARIA ALVES

(BLOGUE PESSOAL)

LIVROS ONLINE



2 comentários:

  1. Preciso o texto: Quao doce a tua presença será para mim, Tu que és o supremo bem. Só tenho o texto em ingles

    ResponderEliminar
  2. Boa noite

    Pode fazer o download do texto integral do blogue em »
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    http://www.homeoesp.org/livros_online.html

    No entanto, caso necessite do mesmo em word, envie-me o seu mail.

    Abraço

    JMA

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