quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

CÂNTICO ESPIRITUAL DE S. JOÃO DA CRUZ - INTRODUÇÃO








O CÂNTICO ESPIRITUAL - UMA INTRODUÇÃO À SUA LEITURA

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O Cântico Espiritual pode ser considerado uma das mais belas de todas as obras do Santo, não obstante a Subida do Monte Carmelo a par com a Noite Escura, sejam de todo essenciais para a compreensão da sua doutrina mística.
O Cântico consta de 40 estrofes e está dividido em três partes, tendo trinta sido escritas no cárcere em Toledo.

Pela doutrina da Subida do Monte Carmelo, o Santo intenta demonstrar o modo correcto de subir até ao Cume do monte, ou seja, ao mais alto estado de perfeição e que consiste na união da alma com Deus.

Depois de ler ainda que parcialmente o Cântico Espiritual, o leitor já estará em condições de iniciar proveitosamente a leitura da dita Subida.

Em sua admirável obra, recorda aos leitores com frequência, o Cume daquela montanha e deseja ardentemente que todos subam, atingindo-O.


***


Como supra ficou dito, tomámos a liberdade de adaptar e resumir as primeiras canções do Cântico, preparando a alma para a sua leitura, e posterior estudo da Subida do Monte Carmelo.
Que tal arrojo nos seja perdoado. 

Inicialmente, julgámos de maior interesse resumir todo o Cântico Espiritual. No entanto, tal atitude poderia fazer com que muitos, acomodando-se a mera e deficiente síntese da doutrina do Doutor Místico, não venham a usufruir da sua obra e pensamento na íntegra. Daí, que nos fiquemos pelas doze canções iniciais.



CÂNTICO ESPIRITUAL
CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO


Esposa

1 –
Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado,
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti; tinhas partido!

2 –
Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.

3 –
Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores,
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.

Pergunta às criaturas

4 –
Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?

Resposta das criaturas

5 –
Mil graças derramando
Prestes passou dos soutos pela espessura
E enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

Esposa

6 –
Ah! Quem poderá sarar-me?
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me
Mensageiro entremeio,
Que não sabem dizer-me o que eu anseio.

7 –
E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.

8 –
Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

9 –
Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

10 –
Apaga-me a tristeza,
Que mais ninguém me pode aqui valer;
E veja tua beleza
Que é luz dos olhos meus
E para ela só os quero ter.

11 –
Mostra tua presença
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e com a figura.

12 –
Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados!...

13 –
Aparta-os, Amado,
Que o voo levanto.

Esposo

Volve já, ó pomba
Que o cervo vulnerado
Por sobre o outeiro assoma
Ao ar desse teu voo, e o fresco toma.

Esposa

14 –
Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As insulas estranhas,
Os rios rumorosos
O sibilo dos ares amorosos;

15 –
A noite sossegada
Tocando já com o surgir da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora...

16 –
Caçai-nos as raposas,
Que a nossa vinha já se encontra em flor,
E tantas são as rosas,
Que em pinha as vamos pôr;
No cimo ninguém surja, por favor.

17 –
Detém-te bóreas morto,
Vem austro, que recordas os amores,
Aspira por meu horto,
E corram teus olores
E o Amado pascerá por entre as flores.

18 –
Ó ninfas da Judeia,
Enquanto nos rosais e dentre as flores
O âmbar nos recreia,
Morai nos arredores
Nem cheguem aos umbrais vossos rumores.

19 –
Esconde-te, meu Bem,
E volta a tua face para as montanhas;
Sem o saber ninguém,
E olha para as companhas
Da que por ilhas anda, as mais estranhas.

20 –
A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ares, ardores,
Mais os medos das noites, veladores.

21 –
Pelas amenas liras
E canto de sereias vos conjuro,
Que cessem vossas iras
E não toqueis no muro,
Para que a Esposa durma mais seguro.

22 –
E já entrou a Esposa
Para dentro do horto ameno desejado
E a seu sabor repousa
O colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

23 –
Sob a árvore de Adão
Ali comigo foste desposada,
Ali te dei a mão
E foste resgatada
Lá onde tua mãe fora violada.

24 –
Nosso leito florido
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de oiro coroado...

25 –
Discorrem as donzelas,
Sobre as tuas pegadas, no caminho;
Ao toque das centelhas
E ao temperado vinho,
Dão-te aromas de bálsamo divino.

26 –
Bebi do meu Amado
Na adega interior; quando saía
Por todo aquele prado
Já nada conhecia
E o rebanho deixei que antes seguia.

27 –
Ali me deu seu peito
E ciência me ensinou muito saborosa,
E a Ele, dom perfeito
De mim, Lhe fiz gostosa
E ali lhe prometi ser sua esposa.

28 –
De alma me consagrei
Ao seu serviço e todo o meu haver;
E já não guardo a grei,
Nem tenho outro mister:
Pois já somente amar é meu viver.

29 –
Se pois, no eido entretida
Não mais eu já for vista nem achada,
Direis que estou perdida,
Que andando enamorada
Perdidiça me fiz, e estou lucrada.

30 –
De flores e esmeraldas
Pela frescura das manhãs colhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas
E num cabelo meu entretecidas.

31 –
Aquele só cabelo,
Que em meu colo voar tu advertiste,
Viste em meu colo, e, ao vê-lo,
Preso nele Te viste
E num só dos meus olhos te feriste.

32 –
E quando tu me olhavas,
Sua graça em mim teus olhos imprimiam:
Por isso mais me amavas
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em Ti viam.

33 –
Não queiras desprezar-me,
Que se morena cor em mim achaste,
Já bem podes olhar-me,
Depois que Tu me olhaste,
Pois graça e formosura em mim deixaste.

34 –
A cândida pombinha
À arca com o ramo regressou
E já a rolazinha
Ao sócio que esperou
Junto às ribeiras verdes encontrou.

35 –
Em solidão vivia,
Seu ninho em solidão pôs escondido,
Na solidão a guia
A sós o seu Querido,
Também, na solidão, de amor ferido.

36 –
Gozemo-nos , Esposo,
Vamo-nos ver em tua formosura
Ao monte e cerro umbroso
Donde mana a água pura:
Entremos mais adentro na espessura.

37 –
E logo às mais erguidas
Cavernas do rochedo subiremos,
Que estão bem escondidas;
Ali logo entraremos
E o mosto das romãs saborearemos.

38 –
Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ó vida e alegria,
Aquilo que me deste noutro dia:

39 –
Da brisa o aspirar,
Da doce filomela a voz amena,
O souto de encantar,
Pela noite serena,
Com chama que consuma e não dá pena.

40 –
Ninguém isto alcançava
E nem Aminadab aparecia
E o cerco sossegava
E à vista descendia,
Das claras águas, a cavalaria.


***




INTRODUÇÃO

1. – As canções iniciam-se no momento em que a alma começa a servir a Deus até que atinja o último estado de perfeição, que é o matrimónio espiritual
Nesta obra, S. João da Cruz ocupa-se das três vias de exercício espiritual até que tal estado seja alcançado:
- a via purgativa;
- a via iluminativa; e
- a via unitiva.

2. – As canções iniciais dirigem-se aos principiantes da via purgativa. Seguem-se as dos iniciados – os aproveitados, na terminologia do Santo –, que respeitam à via iluminativa, onde ocorre o desposório matrimonial.
Depois, as da via unitiva, onde a alma já alcançou um verdadeiro estado de perfeição e se realiza no matrimónio espiritual.
As últimas canções são as do estado beatífico.




COMEÇA A DECLARAÇÃO DAS CANÇÕES DE AMOR ENTRE A ESPOSA E O ESPOSO (JESUS CRISTO)


1. ANOTAÇÃO

A alma começa a entender claramente qual o seu objectivo neste mundo.
Percebe que a vida é breve, estreita a senda que conduz à vida eterna e que apenas o justo se salva. Que as coisas do mundo mais não são do que perigosas ilusões, que o tempo é incerto e que tudo acaba. A perdição fácil e difícil a salvação. Que desperdiçou a maior parte da sua vida com futilidades, desejos e inquietações, afastando-se de Deus que dela se esconde.
Aí, começa a invocar o seu Amado dizendo:


CANÇÃO I

Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti: tinhas partido!

2. – DECLARAÇÃO

Nesta primeira canção, a alma enamorada de Deus, queixa-se da sua ausência, o que obsta à união que tanto anseia, e assim diz:

Onde é que tu, Amado
Te escondeste…?

3. – Pede a alma a Deus que lhe mostre ou a encaminhe para o lugar onde se esconde.
Deus é verdadeiramente um Deus escondido (Isaías). Por outro lado, a grande dúvida da sua presença manifesta-se nas palavras de Job – se a nós vier não o veremos, e se se for não o entenderemos.

4. – Pode acontecer que a alma sinta uma grande notícia espiritual, mas nem por isso se há-de persuadir de imediato que o que sente ou possui é Deus, já que ninguém sabe se é digno de amor ou de ódio diante de Deus (Ecl. IX, 1).

5. – Perante tal incerteza, a alma pede encarecidamente a Deus a clara presença e visão da sua essência.

6. – Para que não vagueie em sendas infrutíferas, a alma terá de reconhecer que Deus está escondido no seu íntimo ser. Assim, querendo-o encontrar, convirá abandonar todas as coisas segundo a afeição e vontade, entrando em recolhimento dentro de si mesma. Santo Agostinho afirmou que não encontrava Deus fora de si, porque mal o buscava; buscava-o fora quando Ele estava dentro.
Daqui decorre que Deus está escondido na alma. 

7. – O Reino de Deus está dentro de nós (Lucas) e nós somos o templo desse Deus (S. Paulo).
Ele está em nós do mesmo modo que nós não podemos estar sem Ele.

8. – Grande é o contentamento da alma quando entende que Deus nunca dela se ausenta, esteja ou não no estado de graça.
Deseja Deus e adora-o na tua alma, diz-nos o Santo, porque se o fizeres fora de ti perder-te-ás. Mas, nunca olvides que embora esteja dentro de ti, está escondido.

9. – Se Deus está dentro de nós, como é que o não vemos? Ele está escondido e para o encontrar havemos também de entrar escondidos no seu esconderijo. Diz o Santo, que para o podermos encontrar devemos esquecer todas as nossas coisas, afastando-nos de tudo, inclusivamente das criaturas, escondendo-nos no nosso retiro interior do espírito, fechando a porta atrás de nós, abandonando a nossa vontade e recitando as nossas orações em segredo.

10. – Disse Isaías à alma, “anda, entra em teus retiros, cerra tuas portas sobre ti e esconde-te um pouco por um momento”. A alma “cerra as portas” a todas as suas potências e a todas as criaturas, escondendo-se por este momento da vida temporal quem quiser atingir a união. Desta forma, veremos Deus.

11. A fé são os pés com que a alma se dirige a Deus e o Amor é o guia que a encaminha.

12. Deus é inacessível e escondido, e por mais que te pareça que o tens e o sentes e o entendes, sempre o hás-de ter por escondido e o hás-de servir escondido, escondidamente.

deixando-me em gemido?

13. Chama-lhe Amado, porquanto Deus acode com maior presteza à alma que o ama. E a alma pode em verdade chamar-lhe Amado, quando está apenas com Ele, não estando apegada a nada que não seja Ele. 
Não o estando totalmente, deverá perseverar na oração, porque de Deus nada se alcança que não seja por intermédio do amor.

14. A ausência do Amado causa um contínuo gemido ao amante. Este, nada amando fora dele, nenhum alívio recebe e a vida torna-se bastas vezes insuportável. 

Fugiste como o veado

15. Nos cantares, a Esposa (Alma) compara o Esposo ao veado, por ser algo estranho e solitário e por ter a virtualidade de se esconder e aparecer, tal como nas visitas que faz às almas e nas ausências que as faz sentir após as visitas, para as submeter a regime de provação e ensinar.

Havendo-me ferido

16. O desejo ardente de ver o Amado faz com que aumente a paixão quando a alma o vê abandoná-la sem que nem muito nem pouco se deixe compreender.

17. As feridas de amor são provocadas por toques escondidos de amor, e que ao modo de dardos de fogo ferem e trespassam a alma, abrasando-a em fogo e chama de amor.

18. A alma por amor reduz-se a nada, nada sabendo senão amar, e julgando intolerável o rigor que o Amor usa para com ela. Não porque a tenha ferido, mas porque a deixou penando e muito sofrendo.

19. Por isso, diz a alma: deixando-me assim ferida, morrendo com feridas de amor por ti, te escondeste com a ligeireza de um veado. Esta dor aumenta nela a ânsia de ver Deus.

Clamando eu fui por ti: tinhas partido!

20. Nas feridas de amor a cura só pode ser realizada por quem feriu. Daí, clamar a alma pelo seu Amado.

21. A Esposa ficou ferida por não ter encontrado Deus e vai penando na sua ausência, já que a Ele se havia entregue e não encontrou a esperada correspondência amorosa.

22. Este pesar e sentimento de ausência de Deus costuma ser tão grande nos que se vão aproximando do estado de perfeição, que se o Senhor lhes não acudisse, acabariam por morrer.


CANÇÃO II

Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.

1. – DECLARAÇÃO
Nesta canção a alma com algum desespero procura aproveitar-se de mediadores para que dêem conhecimento ao seu Amado de sua dor e sofrimento. Assim lhes diz:

Pastores que passardes

2. – A alma chama pastores aos seus desejos, afectos e gemidos, dado que a apascentam de bens espirituais. No entanto, só os afectos e desejos que nascem do verdadeiro amor chegam a Deus.

Lá por entre as malhadas ao Cabeço,

3. – As malhadas são os coros de anjos, pelos quais de coro em coro vão os nossos gemidos e orações a Deus.

Se porventura achardes

4. – Com isto quer o Santo dizer: se por minha boa sorte e ventura chegardes à sua presença, de forma a que Ele vos possa ver e ouvir. Atente-se que Deus acode às nossas súplicas, não em função dos nossos desejos, mas em tempo oportuno.

Aquele que estremeço

5. – É aquele a quem a alma quer mais do que tudo.

Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.

6. – A alma apresenta três necessidades: doença, pena e morte. E padece de três maneiras segundo as suas três potências: entendimento, vontade e memória. Acerca do entendimento diz que adoece, porque não vê Deus – saúde da alma. Acerca da vontade diz que pena porque não vê Deus – deleite da vontade. E acerca da memória diz que fenece, porque recordando a falta de entendimento e dos deleites da vontade, teme perdê-lo o que se consubstancia na sua morte.

7. – Estas três necessidades e penas estão fundadas nas três virtudes teologais: fé, caridade e esperança, respeitando o entendimento à primeira, a vontade à segunda e por último, a memória à terceira. 

8. – A alma ao representar as suas três necessidades, é como se dissera: Dizei a meu Amado, que, já que adoeço e só Ele é a minha saúde, que me dê a minha saúde; e já que peno e só Ele é o meu gozo, que me dê o meu gozo; e já que feneço e só Ele é a minha vida, que me dê vida.


CANÇÃO III

Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras
Nem colherei as flores
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e as fronteiras

1. – DECLARAÇÃO
A alma apercebe-se de que para encontrar o Amado não lhe bastam gemidos, orações ou ajuda de terceiros, como ficou exposto nas canções anteriores.

Buscando meus amores

2. – A alma convence-se de que para atingir Deus tem de se esforçar para além da simples oração e da intercessão de outrem.

3. – Terá de sair do reduto da sua própria vontade e do seu próprio gosto.


Irei por esses montes e ribeiros

4. – Dirigirá o seu esforço para as virtudes, exercitando a vida contemplativa, mortificar-se-á e não abandonará nunca os exercícios espirituais. Entende que o caminho por onde se busca Deus é o de praticar em Deus o bem e mortificar em si o mal.

Nem colherei flores

5. – Não colherá as flores que encontrar no caminho para Deus. Não porá o seu coração na riqueza e bens que o mundo lhe oferece, não admitirá os contentamentos e deleites da carne, nem deverá ater-se aos gostos e consolos do espírito.

Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras

6. – Mencionam-se aqui os três inimigos da alma: mundo (feras), demónio (fortes) e carne (fronteiras).

10. – À alma convém no seu percurso, não colher as flores, ânimo para não temer as feras e forças para passar por fortes e fronteiras, indo pelos montes e ribeiras da virtude.



CANÇÃO IV

Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?

1. – DECLARAÇÃO
Depois de entender o modo como deve começar o caminho, não se detendo em deleites e gozos, e das forças necessárias para vencer as tentações e dificuldades, no que consiste o exercício do conhecimento próprio, a alma, nesta canção, trilha a vereda do conhecimento do Amado, que a criou. Depois do exercício do conhecimento próprio, o conhecimento das criaturas é o primeiro na ordem do percurso espiritual que aspira a Deus. 

Ó bosques e espessuras

2. – O Santo chama bosques aos quatro elementos, terra, água, fogo e ar, e espessuras à imensidão das criaturas.

Plantados pela mão do meu Amado,

3. – Não obstante Deus faça muitas coisas por mão alheia, como pela dos Anjos e dos homens, a criação é obra totalmente sua.

Ó prado de verduras,

4. – Aqui, refere-se ao céu, cujas coisas, tais como planetas e estrelas, não fenecem nem murcham no tempo.

De flores esmaltado

6 – O prado de flores está também de flores esmaltado, entendendo por flores os anjos e as almas santas.


CANÇÃO V

Mil graças derramando
Prestes passou dos soutos p’la espessura
E enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

1. – DECLARAÇÃO
Nesta canção são as criaturas que respondem à alma, conhecendo em substância que Deus criou todas as coisas do nada, dotando-as de graças e virtudes e aformoseando-as de uma ordem admirável.

Mil graças derramando

2. – Por “mil graças” entende a multidão de criaturas, que dotadas de múltiplas graças povoaram o mundo, ou foram “derramadas” no mundo.

E enquanto os ia olhando
Só com sua figura
Os deixou vestidos de formosura.

3. – Poderá dizer-se que as criaturas foram totalmente vestidas de formosura e dignidade.


1. – ANOTAÇÃO DA CANÇÃO SEGUINTE
A alma, chagada em amor por este rastro de formosura do Amado que conheceu nas criaturas, em ânsias de ver aquela invisível formosura, que esta visível formosura causou, diz a seguinte canção:

CANÇÃO VI

Ah! quem poderá sarar-me?!
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me 
Mensageiro entremeio,
Que não sabem dizer-me o que eu anseio.

2. – DECLARAÇÃO
Dando as criaturas à alma sinais do Amado, aumentou-se-lhe o amor, e em consequência cresceu a dor da ausência. Quanto mais a alma conhece a Deus, tanto mais lhe cresce o apetite e ânsia de o ver.

Acaba de entregar-te sem rodeio;

3. – Qualquer alma que ama de verdade não se pode querer satisfazer nem contentar enquanto não possuir deveras a Deus, já que todas as outras coisas não só a não satisfazem como também lhe aumentam as ânsias de o ver.

Não queiras enviar-me 
Mensageiro entremeio,

6 – A alma pede a Deus que se entregue, dando-se todo ao todo da alma, para que esta o tenha todo, sem que lhe envie mais mensageiro.


CANÇÃO VII

E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.

1. – DECLARAÇÃO
Na canção anterior a alma mostrou estar ferida de amor pelo seu Esposo, em virtude das notícias que lhe foram sido dadas d’Ele, pelas criaturas irracionais. Nesta canção são mais subidas as notícias. Recebe-as por intermédio das criaturas racionais, que são os anjos e os homens. Diz ainda, que está a morrer de amor – fica morrendo de amor, e mais morre vendo que não acaba de morrer de amor.

E todos quantos vagam

6 – São os anjos e os homens.

De Ti me vão mil graças relatando,

7 - Umas, dando-nos a entender interiormente coisas da graça de Deus (por intermédio dos anjos), e outras, exteriormente, pelas verdades do Livro Sagrado

E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.

9 – Aqui é como se a alma dissesse: mas além do que estas criaturas me chagam pelas mil graças que de Ti me dão a entender, é tal o “não sei quê” que se sente ficar por dizer, e uma coisa que se conhece ficar por descobrir, e um subido rastro de Deus que se descobre à alma e que fica por rastrear, e um altíssimo entender de Deus que não se sabe dizer, por isso lhe chama “não sei quê”, que, se o que entendo me chaga e fere de amor, isto que não acabo de entender, mas que altamente sinto, me mata.


1 – ANOTAÇÃO PARA A CANÇÃO SEGUINTE
A alma na próxima canção aumenta as suas queixas e fala com a vida da sua alma, dizendo:

CANÇÃO VIII

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

2. – DECLARAÇÃO
O sentido desta canção é o que se segue: Vida da minha alma, como podes perseverar nesta vida de carne, pois te é morte e privação daquela vida verdadeira espiritual de Deus, em que por essência, amor e desejo mais verdadeiramente que no corpo vives?

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,

3. – A alma vive mais onde ama que no corpo que anima, porque no corpo ela não tem a sua vida, antes ela a dá ao corpo e vive por amor no que ama. Como anota S. Paulo, “em Deus temos nossa vida, nosso movimento e nosso ser”.

Matando-te deveras
As setas que recebes

4. – As setas são os toques de amor que nela faz o Amado, que a fecundam de inteligência e amor de Deus.


CANÇÃO IX

Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

2 – DECLARAÇÃO
Nesta canção a alma continua a apresentar ao Amado as queixas de sua extrema dor.

Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?

3 – Não se queixa a alma de ter sido chagada, porque as feridas de amor são doces e saborosas, mas queixa-se do Amado a não matar de amor. É como se dissesse: Porque é que, pois o feriste até o chagar, não o saras, acabando de o matar de amor? Aí o Amado seria a causa da saúde da alma em morte de amor.

Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste

4 – Roubar não é outra coisa senão desapossar do seu a seu dono e apossar-se disso o seu roubador.
5 – A alma enamorada diz ter o coração roubado por aquele a quem ama, não tendo coração para si, nem gosto ou proveito, mas para honra e glória do Amado.
6 – E apercebe-se de que o coração está bem roubado por Deus, quando vive anseios por Ele e não gosta de nada mais para além d’Ele. Deus deixando-o vazio e faminto, deixa-o chagado e doente de amor.

E não tomas o roubo que roubaste?

7 – Com isto quer o Santo dizer: porque não tomas o coração que roubaste por amor, para o encher e fartar, e acompanhar e sarar, dando-lhe assento e repouso completo em Ti?


CANÇÃO X

Apaga-me a tristeza,
Que mais ninguém me pode aqui valer.
E veja tua beleza
Que é luz dos olhos meus
E para ela só os quero ter.

4 – DECLARAÇÃO
Nesta canção pede ao Amado que ponha termo às suas ânsias e penas, pois só Ele será capaz de o fazer, de forma a que o possam ver os olhos da sua alma, porque só Ele é a luz com que os olhos vêem, e sem ser n’Ele ela não os quer empregar em outra coisa qualquer. 


CANÇÃO XI

Mostra tua presença,
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e co’a figura.

2 – DECLARAÇÃO
Deseja a alma ver-se possuída por Deus, já que pena e persevera no seu amor, sem que possa ter remédio que não seja na gloriosa vista da sua divina essência.


CANÇÃO XII

Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados!...

2 – DECLARAÇÃO
A alma continua a desejar a união com o Esposo, mas não encontrando meio ou remédio entre as criaturas, volta-se para a fé, na esperança de que esta lhe dê luz sobre o seu Amado.




JOSÉ MARIA ALVES

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